segunda-feira, 4 de agosto de 2008

A Cronista - Final

Rafaela acabou se separando do marido 2 anos mais tarde. Mesmo sem a certeza de que o ele lhe traia. Não interessa. Só a perda da confiança já era motivo suficiente. E ela fazia questão de deixar explícita essa perda de confiança na frente do marido, sem o menor pudor. O que era pior, pois ele não fazia nada para conquistar de volta ou mesmo se explicar; o que, no raciocínio de uma cronista significa assinar a própria sentença com uma declaração em letras garrafais escrita com o sangue da vítima: "CULPADO".

Não chorou, prometeu a si mesma. A filha ficou com o pai, ingrata - justificava. E a casa também.

Estava sentada no banco do parque municipal, escrevendo pequenos trechos de diálogos casuais quando um vira-lata sentou ao seu lado. Achou estranho, animais de rua não costumam ser afáveis, aproveitadores, talvez. Bon vivants, com certeza. Estava imundo, e fedia. A língua pendia vulgarmente para fora, salivando sem parar. E parecia que estava prestes a ter um ataque cardíaco, animal inquieto!
Não conseguia se concentrar. E o que ia fazer? Expulsar o animal dali? Não, ele era exótico em seu comportamento, e desistiu de escrever. Pôs-se a observa-lo, tentando estabalecer um diálogo mudo com a criatura. A comunicação primeiro se deu pelos olhos grandes e piedosos do cão e riscados e pesados da escritora:

- Qual é o seu nome?
- Do que queira me chamar, tem comida?
- Não. O que você costuma fazer?
- Andar, correr, brincar, cagar, marcar território. Tem comida?
- Me lembra meu marido, engraçado, não?
- Você dava comida pra ele?
- Não, não sei cozinhar e pretendo nunca aprender.
- Por que? Você não come?
- Às vezes.
- Bicho esquisito. Vou dar o fora

E o animal desviou o olhar, procurando no parque alguma outra companhia que lhe pudesse fornecer alimento, provavelmente.

- Ei, não vai embora. Quero brincar com você. Costumava me entreter com minha filha, sabe, mas ela preferiu ficar com o pai.
- Não me espanta, a menina devia morrer de fome contigo. O seu marido parece um cara prudente.
- Me trocou por outra mulher.
- Ela deve cozinhar bem.
- Não sei.
- Ei! Uma velhinha. Elas sempre carregam algo na bolsa. Tchau!

E assim foi-se o amigo inesperado e a cronista ficou ali, observando o banco vazio. E seu estômago também.

6 comentários:

  1. - You gave to food pra it?

    ResponderExcluir
  2. Bem interessante, acho sempre interessante quando algo foge ao fantástico. Estou lendo um livro atualmente do Borges, conhecido como o grande mestre do realismo fantástico.
    Estou para escrever um conto, até que enfim pois já estava quase morrendo.
    Abraços

    ResponderExcluir
  3. hehehe... final inusitado! gostei das personagens dessa história.

    abs,
    gus

    ResponderExcluir
  4. Adorei a cronista quando li as duas primeiras partes.. já tem algum tempo :} não sabia que ia ter esse desfecho haha
    não digo que ela errou.. mas o comportamento dela me trouxe sensações ruins :~
    quem sabe ela encontra alguém compatível com ela?
    :B

    ResponderExcluir
  5. Algumas pessoas preferem seus próprios botões...

    Tô add você no meu blog, Márcio!
    Me linka também!!
    www.livialamblet.blogger.com.br

    ;***

    ResponderExcluir
  6. Realismo fantástico! Nunca poderia imaginar que terminaria dessa forma! Conseguiu me surpreender (isso não é algo simples). Definitivamente, tens muito talento.

    ResponderExcluir

comunique-se