domingo, 24 de agosto de 2008

Café da Tarde

Estávamos a caminho de casa quando pegamos um engarrafamento. Sugeri um desvio e acabamos passando pelo bairro de minha tia; resolvemos fazer uma visita.

O pequeno corredor guardado por uma pesada porta de negras grades de ferro estava sob a penumbra do fim de tarde, algumas folhas empilhadas do pé dos degraus e latidos de cães nos receberam antes que nossos parentes nos percebessem. O marido dela veio até a porta e apertou nossas mãos com aquele braço corpulento e porte descomunal. Seu rosto era sólido, olhos vivos e sempre portava um sorriso indecente, quase vulgar de tão espaçoso. Subimos até o segundo andar e trocamos rápidas palavras enquanto esperávamos minha tia sair do banho para, enfim, realizar o dever social do café da tarde e partirmos.

Em poucos minutos estávamos reunidos ao redor da mesa da cozinha, mastigando pão com queijo e mortadela regado a cappucino. Só percebi a mudança de assunto quando o marido já havia mencionado o nome do rapaz e meu pai apresentava um ar de preocupado, de cabeça baixa e, pela primeira vez desde que peguei carona com ele vindo do Rio, ficou calado.

- Pois é, encontrei seu amigo outro dia. Nogueira. - com ar de ironia.

- Ele não sabe quem é. Diz logo pra ele! - disse minha tia.

- Eu sei quem é. - disse, balançando pesadamente a cabeça sem levantar os olhos.

- Pois bem, você ficou sabendo daquele caso da menina que foi executada há uns meses, né? Deu até no jornal.

- Sei sim, não era a filha dele?

- Sim, mas você não sabe dos detalhes.

- Perae, não era ele aquele seu amigo que te arranjou aquele problema com mulher casada? - interrompeu minha tia.

- Ele mesmo. Depois descobri que era amante dele e que os dois estavam me usando. Não sabe da pior, ela de vez em quando ainda aparece lá na delegacia me dando mole. - disse, com riso incrédulo. Minha mulher tem que dar graças a Deus que sou um cara de família, honesto.

- Ih, mas esse cara era um cafajeste mesmo hein.

- Mas você sabe que ele nem sempre foi assim?!

- Tá, deixa eu continuar então. - retomou o marido.

Tomei o último gole do cappucino e comi uma fatia inteira de mortadela.

- Tu sabe que ele era matador, né? Do tipo ruim mesmo. Fez muita maldade. Matava bandido a sangue frio e quem quer que fosse. - a cada frase seu rosto se comprimia cada vez mais, revelando as poucas rugas que se atreviam a sair de seus lugares naquele imenso rosto militar.

- No dia da morte da filha dois bandidos estavam esperando ele em casa pra executá-lo (de tanta coisa ruim que ele fez), mas parece que a filha apareceu primeiro com uma amiga e eles engravataram ela e fizeram de refém.

Pude escutar um abafado puta que pariu vindo da direção do meu pai. E eu brincava com as migalhas do pão.

- Na hora que ele chegou, olha só o que esse cara me faz, viu a menina com o revólver na cabeça e começou a trocar tiro com os reféns. É mole?

- Puta merda, preferiu sacrificar a filha.

- E você não sabe do pior. - disse minha tia, com um sadismo histérico no tom da voz. Disse que a cena foi horrível, a amiga chorando e tentando arrastar a menina dali. A garota chorando desesperadamente e pedindo pro pai parar de atirar. Dizem que foi horrível de triste.

- Posso continuar? - perguntou o marido, sereno.

- Pode, continua.

- Então, os bandidos viram que ele não ia se entregar e gritaram. - e começou a gesticular com uma das mãos enquanto a outra segurava um objeto invisível - OLHA, JÁ QUE NÃO VAI VOCÊ, VAI ESSA AQUI. E atirou à queima roupa na cabeça da menina. Ele continou atirando até matar os bandidos.

- Olha, vou te contar uma coisa. Nunca vi nada assim. Eu fui na missa de sétimo dia da garota. Ela era linda, loira. Dezessete anos. - comentou minha tia.

- Sim, eu conheci. Era linda a garota.

- Na missa você tinha que ver. Na fileira da frente todos os familiares da menina e do namorado dela chorando, exceto o pai. Era uma cena monstruosa. Lá estava ele, sóbrio e conversando com amigos como se nada tivesse acontecido.

Um silêncio por uns minutos. Na minha cabeça a estória continou por muito mais tempo. Vi a morte e vida de todas as personagens. Quando percebi, estava em casa.

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