terça-feira, 7 de julho de 2020

Desalento

Estava eu no ponto de ônibus quando um homem me abordou. Vestia um terno marrom empoeirado e segurava em uma das mãos uma maleta de couro velha com algumas roupas pendendo pra fora do fecho zíper quebrado, o qual havia sido remendado com um barbante. Justificou o pedido de esmola dizendo que estava indo morar na rua. Sua mulher o traía com o vizinho que, juntos, o expulsaram de casa. Sua filha também não o queria mais. Estava pedindo 5 reais pra comprar um pão. Não sei se a história é verdadeira, mas seus olhos marejados comunicavam um desalento tocante.

domingo, 21 de junho de 2020

É apenas um jogo

É um jogo de dor e prazer. Pois todo jogo é antecipação, é ansiedade. É vontade, mas também é medo. É razão, mas também, segredo. É olhar onde nada se vê,  e enxergar o que não se mostra. É sentir sem tocar, é tocar sem sentir. É xingar, amando. É amar, xingando. É gozar sozinho ou acompanhado. É chorar ao ver o parceiro derrotado. É rir também da derrota, quando contra o destino, se aposta.

É continuar nos paradoxos, nesse enredo sem fim. Nessas lacunas transversais, nos vazios abissais. É perceber que todo mundo é sozinho e mesmo assim, apoiar-se em ombro amigo. Mesmo sem tocar, mesmo sem sentir, mesmo sem gozar, mesmo sem sorrir. Porque, como disse, há dor e há prazer. Nesse jogo de desejar... você.


quarta-feira, 17 de junho de 2020

Confissão

Quero seu cheiro, a sua boca;
a minha língua, nas suas coxas.
Quero meu beijo de encontro ao seu;
e o meu corpo, embaixo do teu.

As tuas roupas na minha cama,
na cadeira e pelo chão.
Tua calcinha já bem molhada,
esperando pela minha mão.

A tua mordida, as tuas unhas;
escavando a minha carne.
Encontrando nada mais
que meu desejo e tua vontade.

Também te arranho e te aperto,
mordo, lambo, te quero perto.
Já quase dentro, não ignoro
o teu prazer, já tão sonoro.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Cronos

Cronos olhava o corpo do seu pai enquanto esquartejava seu pênis. A fúria não deixou vestígios. Seguiu um vazio. E culpa. Remorso. Confundiu-se com o corpo desfalecido e mutilado. Não era mais um Deus, nunca fora. Agora percebera que nem ele jamais seria. Vestiu-se com a vergonha e deitou-se com sua irmã Reia.

A cada filho, via o fantasma do pai. Seu segredo ali, exposto, ingenuamente. Devorou um a um. Até que a traição de sua irmã lhe cobrasse sua dívida. Pavor e alívio. Medo e vingança. Libertou-se de si e juntou-se ao pecado do pai.

Cronos não foi capaz de superar sua dor. Ninguém é capaz. Na verdade, fora vítima de sua mãe, Gaia. Agora percebia, mas já era tarde. Se ao menos houvesse hesitado, mas o tempo só corre numa direção. E consome tudo, até a si mesmo.

Zeus, o narcisista, não tinha remorso. Não havia vivido o abuso mas praticava os mesmos atos do pai. Ao menos não devorava os filhos, mas repetira seu avô. Como uma ressurreição, a história havia de se repetir.

Até que Hércules, neto de Cronos, foi capaz de romper as correntes do tempo, seguiu seu caminho. Longe do lar, longe do Olimpo, junto aos mortais. Tornar-se e aceitar-se mortal. Eis a verdadeira liberdade.

Os deuses definitivamente são por natureza trágicos.

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Carona

Com a chuva, veio o anjo. Ou seria o contrário?

Se tivessem me perguntado como seria meu dia na manhã daquele domingo, teria respondido sem muito entusiasmo que, como todos os domingos, passaria em casa assistindo tevê, escolhendo o almoço num aplicativo de entrega de comida por uns vinte minutos até pedir o de sempre e, ao fim da tarde, tentaria terminar algum romance estrategicamente posicionado no canto da mesa como um lembrete do meu hábito de largar as coisas pela metade.

Não poderia estar mais errado.

Um anjo. Como você reagiria? Como você saberia? Fico me perguntando agora, uma semana depois. Nossa conversa foi rápida. Ele me deu carona pra fugir daquela tempestade. Seu carro cheirava a novo e ele fumava um cigarro preto, quem diria.

Ah, sim. Logo que entrei no carro percebi que se tratava de uma entidade angelical. As penas chamuscadas não deixavam enganar. Nem a auréola pairando sobre seus cabelos brancos e esvoaçantes - mesmo com as janelas fechadas.

Tossi.

"Perdoe-me" - desculpou-se apontado para o cigarro em sua boca.  "Faz parte do trabalho. Meu nome é Jomael, prazer" - estendeu a mão esquerda e nos cumprimentamos.

"Não sou nenhuma estrela, como pode perceber, apesar de sabermos que você também não é nenhum especialista em mitologia angelical."

"Olha, isso não é um sermão. A gente só quer te prevenir. Você vai morrer".

"Como?" - reagi assustado.

"Melhor você nem saber. Mas não é agora, calma. Vai viver o suficiente. Ainda vai ter muitas oportunidades pra decepcionar os outros e a si mesmo. A gente só quer te dar uma chance de não estragar a festa."

"Festa? Que festa? Vão comemorar quando eu morrer?"

"Sim, claro!"

"Vou decepcionar muita gente, né?"

"Ah, se vai. Poderia-se dizer que você nasceu pra isso. Toma. Vai, pode pegar. Traga, não vai te matar. Pelo menos não agora."

Enchi os pulmões com aquela fumaça... angelical? Tinha gosto de terra.

Jomael reparou a minha careta.

"A gente usa isso pra se materializar e fazer nosso trabalho. Bom, pelo menos eu uso. Cada um tem seus hábitos. Um irmão gostava de engravidar virgens. Acho que você deve ter ouvido falar dele."

Jomael falava de um jeito engraçado. Digo, engraçado pra um anjo. Sua voz era um pouco aguda demais, quase não se poderia levar a sério. Chegava a dar uma afinada nas vozes às vezes. E tinha um tom jocoso quando falava dos seus irmãos e do tipo de trabalho que faziam.

"Meninos de mensagens! E ficam cheio de pose, acham um máximo. Por mim nem usaria essa parafernalha, totalmente inútil" - reclamou enquanto gesticulava em direção às asas e auréloa. "Fico parecendo um pavão. Regras da nova administração."

"Mas voltando ao que interessa. Você vai morrer. E não vai ser bonito."

Uma sensação ruim subiu à minha boca.

"Desculpe, não era pra você saber isso. Mas não vai ser agora e blá blá blá. A mensagem é: viva mais sua vida! Dane-se pra onde vai depois. Pára de se preocupar com isso. É essa sua tentativa patética de querer agradar os outros que te torna uma grande decepção! Ainda há chance da festa mudar de lugar. Ao invés de ser desse lado, pode ser do lado de lá. Pense a respeito."

Deixou o maço vazio comigo. Uma recordação. Virou a esquina e o carro parou embaixo de uma carreta. Ambos voltamos pra casa.

Desinstalei o Uber.