terça-feira, 12 de maio de 2020

Cronos

Cronos olhava o corpo do seu pai enquanto esquartejava seu pênis. A fúria não deixou vestígios. Seguiu um vazio. E culpa. Remorso. Confundiu-se com o corpo desfalecido e mutilado. Não era mais um Deus, nunca fora. Agora percebera que nem ele jamais seria. Vestiu-se com a vergonha e deitou-se com sua irmã Reia.

A cada filho, via o fantasma do pai. Seu segredo ali, exposto, ingenuamente. Devorou um a um. Até que a traição de sua irmã lhe cobrasse sua dívida. Pavor e alívio. Medo e vingança. Libertou-se de si e juntou-se ao pecado do pai.

Cronos não foi capaz de superar sua dor. Ninguém é capaz. Na verdade, fora vítima de sua mãe, Gaia. Agora percebia, mas já era tarde. Se ao menos houvesse hesitado, mas o tempo só corre numa direção. E consome tudo, até a si mesmo.

Zeus, o narcisista, não tinha remorso. Não havia vivido o abuso mas praticava os mesmos atos do pai. Ao menos não devorava os filhos, mas repetira seu avô. Como uma ressurreição, a história havia de se repetir.

Até que Hércules, neto de Cronos, foi capaz de romper as correntes do tempo, seguiu seu caminho. Longe do lar, longe do Olimpo, junto aos mortais. Tornar-se e aceitar-se mortal. Eis a verdadeira liberdade.

Os deuses definitivamente são por natureza trágicos.

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