segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Carona

Com a chuva, veio o anjo. Ou seria o contrário?

Se tivessem me perguntado como seria meu dia na manhã daquele domingo, teria respondido sem muito entusiasmo que, como todos os domingos, passaria em casa assistindo tevê, escolhendo o almoço num aplicativo de entrega de comida por uns vinte minutos até pedir o de sempre e, ao fim da tarde, tentaria terminar algum romance estrategicamente posicionado no canto da mesa como um lembrete do meu hábito de largar as coisas pela metade.

Não poderia estar mais errado.

Um anjo. Como você reagiria? Como você saberia? Fico me perguntando agora, uma semana depois. Nossa conversa foi rápida. Ele me deu carona pra fugir daquela tempestade. Seu carro cheirava a novo e ele fumava um cigarro preto, quem diria.

Ah, sim. Logo que entrei no carro percebi que se tratava de uma entidade angelical. As penas chamuscadas não deixavam enganar. Nem a auréola pairando sobre seus cabelos brancos e esvoaçantes - mesmo com as janelas fechadas.

Tossi.

"Perdoe-me" - desculpou-se apontado para o cigarro em sua boca.  "Faz parte do trabalho. Meu nome é Jomael, prazer" - estendeu a mão esquerda e nos cumprimentamos.

"Não sou nenhuma estrela, como pode perceber, apesar de sabermos que você também não é nenhum especialista em mitologia angelical."

"Olha, isso não é um sermão. A gente só quer te prevenir. Você vai morrer".

"Como?" - reagi assustado.

"Melhor você nem saber. Mas não é agora, calma. Vai viver o suficiente. Ainda vai ter muitas oportunidades pra decepcionar os outros e a si mesmo. A gente só quer te dar uma chance de não estragar a festa."

"Festa? Que festa? Vão comemorar quando eu morrer?"

"Sim, claro!"

"Vou decepcionar muita gente, né?"

"Ah, se vai. Poderia-se dizer que você nasceu pra isso. Toma. Vai, pode pegar. Traga, não vai te matar. Pelo menos não agora."

Enchi os pulmões com aquela fumaça... angelical? Tinha gosto de terra.

Jomael reparou a minha careta.

"A gente usa isso pra se materializar e fazer nosso trabalho. Bom, pelo menos eu uso. Cada um tem seus hábitos. Um irmão gostava de engravidar virgens. Acho que você deve ter ouvido falar dele."

Jomael falava de um jeito engraçado. Digo, engraçado pra um anjo. Sua voz era um pouco aguda demais, quase não se poderia levar a sério. Chegava a dar uma afinada nas vozes às vezes. E tinha um tom jocoso quando falava dos seus irmãos e do tipo de trabalho que faziam.

"Meninos de mensagens! E ficam cheio de pose, acham um máximo. Por mim nem usaria essa parafernalha, totalmente inútil" - reclamou enquanto gesticulava em direção às asas e auréloa. "Fico parecendo um pavão. Regras da nova administração."

"Mas voltando ao que interessa. Você vai morrer. E não vai ser bonito."

Uma sensação ruim subiu à minha boca.

"Desculpe, não era pra você saber isso. Mas não vai ser agora e blá blá blá. A mensagem é: viva mais sua vida! Dane-se pra onde vai depois. Pára de se preocupar com isso. É essa sua tentativa patética de querer agradar os outros que te torna uma grande decepção! Ainda há chance da festa mudar de lugar. Ao invés de ser desse lado, pode ser do lado de lá. Pense a respeito."

Deixou o maço vazio comigo. Uma recordação. Virou a esquina e o carro parou embaixo de uma carreta. Ambos voltamos pra casa.

Desinstalei o Uber.

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