Daiana estava contando as
calorias. Os ossos das mãos, envoltos numa fina camada de pele, seguravam uma
caneta vermelha, enquanto uma azul repousava ao lado do caderno.
Sua mente era consumida por essa
atividade durante a maior parte do dia, como um ruído para abafar a fome que
devorava seu corpo por dentro há meses.
As contas eram sempre as mesmas,
pois repetia as refeições nos horários pré-determinados religiosamente, mas
sempre conferia, uma a uma, a quantidade de calorias ingeridas. Delas, subtraia
as calorias necessárias para uma dieta de alguém de sua idade, estatura e peso.
Seu rosto ficava tenso, e só amenizavam as rugas da testa e dos lábios rachados
quando obtinha o resultado final. Zero. Este era escrito com a caneta azul.
No entanto, apesar de passar
despercebida de seus amigos e alguns parentes pelos primeiros dois meses, já
era notável que suas contas escondiam alguma fraude. Caso a contagem de
calorias fosse de fato uma preocupação nutricional com vistas a uma dieta
saudável, deveria levar em conta com igual rigor o consumo diário pelas
atividades físicas. Esta parte era claramente negligenciada.
A matemática, contudo, não admite
omissões e cobrava, indiscriminadamente, os restos a pagar. Suas roupas ficaram
mais largas, as extremidades das articulações, protuberantes e o seu passo,
muito mais silencioso e leve, como uma mariposa. Para o sorriso enrugado em
frente ao espelho, essas conquistas eram motivo de orgulho.
Ao fim das contas, guardou o
caderno na gaveta da mesa do computador, onde passava a maior parte do dia.
Preparou um chá para acelerar o metabolismo e voltou ao seu quarto. Caso
houvesse alguém em casa, não notaria sua presença ou passagem pelas escadas,
sala e cozinha. Seu reflexo no espelho da sala e vidros dos quadros
assemelhava-se a uma aparição, habitando dois mundos.
Sentou-se em frente à tela do
computador, o chá quente umedeceu seus lábios áridos, repousou a caneca e
pôs-se a digitar.
“Renato, você está aí?”
Depois de dois minutos, veio a
resposta.
“Sim, estou xD. Como você está?”
“Estou bem. Quer sair?”
“._. claro. Onde você quer ir?”
“No Maracanã, amanhã à tarde,
você pode?”
“Maracanã? Fazer o que lá?”
“Andar de patins.”
“Hm”
Daiana franziu a testa e os
lábios. Seus ombros e dedos enrijeceram. Aquelas duas letras na tela a
irritaram profundamente. Não era uma resposta, mas também dizia muito.
Fazia meses que não conversava
com ninguém, ainda mais com Renato. Sabia de seu interesse por ela, razão pela
qual o evitara há mais de um ano desde seus avanços na festa de uma amiga em
comum. Ele estava bêbado, com uma lata de cerveja na mão, duas coisas que lhe
causavam repulsa. O hálito forte era outra lembrança desagradável, assim como
seu braço envolvendo seu pescoço. Daiana não sabia como reagir e ficou
imobilizada com aquela situação. Odiava-se por não ter sido mais firme na
negativa. Renato forçou o beijo, mas Daiana conseguiu desviar o rosto. Em
seguida, as palavras sussurradas em seu ouvido lhe soaram como ofensa,
produzindo o efeito contrário ao esperado. Uma amiga, vendo a cena,
aproximou-se e puxou Daiana para conversar, dizendo ter assuntos urgentes para
tratar. Foi sua salvação.
Mas nesse momento não precisava
de salvação. Estava indo em direção contrária. Interrompeu o silêncio de alguns
minutos.
“Depois podemos ir aonde quiser.
Só quero patinar um pouco.”
Ao digitar, sentiu uma torção
dentro do seu corpo. Imediatamente segurou a caneca e a colocou sobre o
estômago para aliviar a dor. Para a forte enxaqueca, já desistira dos remédios.
“Aonde eu quiser :X?” Veio a
resposta, demoradamente, como se reescrita diversas vezes.
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