domingo, 3 de janeiro de 2016

Daiana estava contando as calorias. Os ossos das mãos, envoltos numa fina camada de pele, seguravam uma caneta vermelha, enquanto uma azul repousava ao lado do caderno.
Sua mente era consumida por essa atividade durante a maior parte do dia, como um ruído para abafar a fome que devorava seu corpo por dentro há meses.
As contas eram sempre as mesmas, pois repetia as refeições nos horários pré-determinados religiosamente, mas sempre conferia, uma a uma, a quantidade de calorias ingeridas. Delas, subtraia as calorias necessárias para uma dieta de alguém de sua idade, estatura e peso. Seu rosto ficava tenso, e só amenizavam as rugas da testa e dos lábios rachados quando obtinha o resultado final. Zero. Este era escrito com a caneta azul.
No entanto, apesar de passar despercebida de seus amigos e alguns parentes pelos primeiros dois meses, já era notável que suas contas escondiam alguma fraude. Caso a contagem de calorias fosse de fato uma preocupação nutricional com vistas a uma dieta saudável, deveria levar em conta com igual rigor o consumo diário pelas atividades físicas. Esta parte era claramente negligenciada.
A matemática, contudo, não admite omissões e cobrava, indiscriminadamente, os restos a pagar. Suas roupas ficaram mais largas, as extremidades das articulações, protuberantes e o seu passo, muito mais silencioso e leve, como uma mariposa. Para o sorriso enrugado em frente ao espelho, essas conquistas eram motivo de orgulho.
Ao fim das contas, guardou o caderno na gaveta da mesa do computador, onde passava a maior parte do dia. Preparou um chá para acelerar o metabolismo e voltou ao seu quarto. Caso houvesse alguém em casa, não notaria sua presença ou passagem pelas escadas, sala e cozinha. Seu reflexo no espelho da sala e vidros dos quadros assemelhava-se a uma aparição, habitando dois mundos.
Sentou-se em frente à tela do computador, o chá quente umedeceu seus lábios áridos, repousou a caneca e pôs-se a digitar.
“Renato, você está aí?”
Depois de dois minutos, veio a resposta.
“Sim, estou xD. Como você está?”
 “Estou bem. Quer sair?”
“._. claro. Onde você quer ir?”
“No Maracanã, amanhã à tarde, você pode?”
“Maracanã? Fazer o que lá?”
“Andar de patins.”
“Hm”
Daiana franziu a testa e os lábios. Seus ombros e dedos enrijeceram. Aquelas duas letras na tela a irritaram profundamente. Não era uma resposta, mas também dizia muito.
Fazia meses que não conversava com ninguém, ainda mais com Renato. Sabia de seu interesse por ela, razão pela qual o evitara há mais de um ano desde seus avanços na festa de uma amiga em comum. Ele estava bêbado, com uma lata de cerveja na mão, duas coisas que lhe causavam repulsa. O hálito forte era outra lembrança desagradável, assim como seu braço envolvendo seu pescoço. Daiana não sabia como reagir e ficou imobilizada com aquela situação. Odiava-se por não ter sido mais firme na negativa. Renato forçou o beijo, mas Daiana conseguiu desviar o rosto. Em seguida, as palavras sussurradas em seu ouvido lhe soaram como ofensa, produzindo o efeito contrário ao esperado. Uma amiga, vendo a cena, aproximou-se e puxou Daiana para conversar, dizendo ter assuntos urgentes para tratar. Foi sua salvação.
Mas nesse momento não precisava de salvação. Estava indo em direção contrária. Interrompeu o silêncio de alguns minutos.
“Depois podemos ir aonde quiser. Só quero patinar um pouco.”
Ao digitar, sentiu uma torção dentro do seu corpo. Imediatamente segurou a caneca e a colocou sobre o estômago para aliviar a dor. Para a forte enxaqueca, já desistira dos remédios.

“Aonde eu quiser :X?” Veio a resposta, demoradamente, como se reescrita diversas vezes.

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