quarta-feira, 25 de março de 2015

Bobo, muito bobo.

Bobo, muito bobo.
Nico cansava de dizer aquilo, aliás, era tudo que sabia dizer.
Não que seus pensamentos se resumissem a isto, mas era um problema com o aplicativo de linguagem.
Elaborava esquemas delicados, construções elaboradas, um mundo de intricadas correlações, sínteses das contradições, mas tudo que sabia dizer era "Bobo, muito bobo."
Sua família não tinha muito estudo, "É retardado, tadinho". Seu apelido era Bobo, até entre seus pais.
Colheu uma fruta certo dia e começou a falar mais que "Bobo, muito bobo".
Era uma fruta azeda, tinha ânsia em comê-la, mas era a única forma de verdadeiramente falar.
Agora, por mais que falasse, ainda não conseguia se expressar. O que falava não ficava na memória, pior, ia tudo embora.
Tudo aquilo pensado, redondo, acabado, se desfazia nas palavras como uma roupa que ia se desfiando, desfiando. A fruta desatava um nó, mas lá se ia todo o novelo.
Curioso, fez um experimento. Pingou o suco da fruta no caderno de anotações que passou a usar antes de falar na tentativa de reter a memória em algum lugar, já que dentro da cabeça não ficava. Viu que o suco apagava as palavras depois de lidas, mas sem antes transformar as perguntas e respostas. Trocava as interrogações por pontos finais e exclamações.
Passaram-se os anos, e foi falando mais que pensava. Já nem se preocupava em criar e guardar memória, aquele oceano secou com a sangria desatada de palavras. Não precisava do suco, a saliva já era azeda.
O que achavam dele os retardados?
Bobo, muito bobo.

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