terça-feira, 5 de março de 2013

Isca de Súplicas

Amélia acordou com o choro de um bebê. Uma força pesava sobre seu corpo, impedindo o movimento dos músculos e a vontade de se levantar, abrir os olhos. Por alguns instantes, nada daquilo fazia sentido. Pra que abrir os olhos? Não estava em algum lugar nesse instante? Ou seria a segundos atrás? Onde ela estava mesmo? O que é isso... choro? que choro é esse?! eu não tenho filh.... Samara! O retorno da lucidez à crueldade da vida desperta trouxe com seu golpe todas as responsabilidades suspensas durante o sono. Além do inconfessável sentimento de culpa e vergonha por ter esquecido sua filha, mesmo que por breves instantes durante o despertar. O sentimento amargo, contudo, funcionou como combustível para a explosão de vontade que expulsou de seu corpo a fraqueza, fazendo-a levantar num pulo. Antes que pudesse recuperar toda a consciência de seu corpo, já estava tateando por algo que ainda teimava esquecer... o interruptor... a maçaneta... os degraus. O quarto da pequena Samara ficava no último andar. Estava tão cansada que nem se perguntou por que, nem o que havia de estranho com aquela escada que parecia ter o dobro de degraus da última vez que se lembrava de ter usado. Quando fora mesmo? O choro ficava era mais intenso e angustiante. Cambaleante, alcançou o último degrau, com o coração apertado por não ter certeza de quanto tempo sua filha, sua única família, estivera à espera, solitária, faminta, e, provavelmente, aterrorizada com o abandono temporário da mãe. Para uma criança, esse espaço de tempo entre pode parecer uma eternidade. Uma eternidade como o espaço entre um choro e outro, que ia ficando maior. Um silêncio que já evidenciava o esgotamento daquele pequeno corpo. O corredor estava imerso na escuridão. Amélia tentou procurar o interruptor enquanto avançava rumo ao quarto, mas sem sucesso. O choro da criança estava ensurdecedor... Não havia cessado segundos atrás? Havia algo de estranho naquela súplica. Algo que lhe fez tremer, um pavor real que paralisou seu corpo. Não tinha coragem de dar um passo para além da porta. A escuridão era quase tátil e o choro incessante, uma entidade. Ela sabia que havia algo de errado. O choro cessara. Era a última chance para a jovem mãe tomar coragem. Antes que percebesse o comando mental, acendera a luz. Lá estava Samara em seu berço. Ou os contornos de uma criança. é apenas minha filha, é apenas minha filha! Cada frase parecia ecoar dos passos em direção ao berço. O silêncio era absoluto, mas a voz em sua cabeça estava cada vez mais alta. Estendeu a mão para tocar na filha que dormia com as costas viradas para a mãe. É APENAS MINHA FILHA! Ao virá-la, dormia profundamente. Um semblante suave. Samara estava longe, no mundo dos sonhos, entre os desejos de crianças. Pegou a filha nos braços e desesperadamente buscou naquele pequeno corpo a paz que precisava, respirando profundamente aquela serenidade. Seu coração estava agitado, soando em seus ouvidos. Tinha medo de acordar a pequena Samara com seu corpo tão comprido junto ao peito da mãe. Cerrou os olhos à procura da filha. A voz havia sumido em sua cabeça, quando um sussurro repousou em seu ouvido. Amélia? Era seu marido, Jonathan. O que está fazendo aqui? Você está gelada! O que aconteceu? Tá tudo bem? Tudo. E a Samara? Ela tá bem, tá dormindo. Você está chorando, o que houve? Os choros de novo? – afirmou com a cabeça – Ai, Amélia. Eu disse pra você me acordar quando acontecesse de novo. Eu não sei, achei que estivesse sozinha em casa. Quando percebi, estava no quarto. Eu vou chamar meu irmão. Não! Não precisa, por favor. Sua família vai achar que sou louca. Você disse que ia me chamar se acontecesse de novo, estou preocupado. Eu digo pra ele que vi na TV ou qualquer coisa que bebês podem sair do berço e andar pela casa e fiquei impressionado. Não vou mencionar nada, pode deixar. Será que estou ficando louca? Não diga uma bobeira dessas, você sabe que tenho um sono pesado. Vai ver a Amélia tem terrores noturnos. Nessa idade? Eu não sei o que me assusta mais. Vamos querida, vamos voltar pra cama. Vou levar a Samara pra dormir conosco hoje, tudo bem? Claro. Jonathan não dormiu aquela noite. Retornou sua filha ao berço no segundo andar sem não antes deixar de certificar-se de que sua mulher adormecera. Haviam se mudado há pouco tempo para aquela casa na periferia e não conseguiam dormir no quarto destinado ao casal. Era estranhamente muito mais quente que todo o resto da casa. No verão estava insuportável e o ar condicionado só chegaria em uma semana, não tendo importado as ameaças enérgicas feitas ao telefone ao pobre atendente da famosa rede de imóveis e eletrodomésticos. Jonathan preferia acreditar que a distância do quarto da filha era a única razão para o comportamento errante da esposa em seus despertamentos noturnos e os choros só ouvidos por Amélia, fruto da imaginação de uma mãe sob estresse. E havia muitas razões para a perda de nervos de Amélia.

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