domingo, 13 de julho de 2008

Narcisa - parte 2

Passaram-se dois meses e o desejo se tornou um fardo. Narcisa desejava, agora, apenas a liberdade de voar, não mais o trágico fim de sua carne esparramada no asfalto imundo de pessoas indiferentes. Queria voar e se sentir observada, admirada, de rouxinol a uma canária desinibida; que metamorfose! O fenômeno pode ser explicado a partir de duas perspectivas: a do leitor e a da personagem.

1. A do leitor.

Irredutível, cruel e sumário, o leitor das cartas que Narcisa escrevia ao jornal (sob o pseudônimo de Taís Borges) percebera que sua musa estava lentamente armando a própria armadilha de um amor egocêntrico. De privadas podres de motéis baratos, Taís passou a dedicar sua atenção à lúgubre decoração dos corredores, ao gosto fino de seu parceiro ao escolher Grappette no lugar de Tobby e ao viril cheiro de seu corpo em transe quando a possuía. “Possuía”, essa foi a palavra que a delatou aos olhos do leitor. Jamais se preocupara em nomear os encontros espontâneos com o rapaz cujo nome já esquecera há semanas e fazê-lo seria, então, prova concreta de uma abertura no flanco dos sentimentos.

O leitor era um senhor de 40 anos, solteiro. Tivera muitas amantes, dinheiro e poder. Perdera tudo após a morte de sua filha, não porque tivesse entrado numa depressão profunda que imputasse seu talento nato para os negócios; mas porque fora acusado de assassinato. 15 anos na cadeia, bom comportamento e uma fuga de presos lhe garantiram a liberdade. Delatara os colegas internos e fora reduzida sua pena a um terço. Mas essa estória não nos vem ao caso. Pelo menos por hora.

2. A da personagem

Taís realmente mudara e Narcisa sentia uma ligeira ponta de vergonha diluída em sensualidade ingênua. Taís era o espelho da autora, como toda boa personagem criada à flor da adolescência. Juntas atravessaram desilusões amorosas, a perda do pai, o ingresso na faculdade e a conquista do primeiro emprego. Todos os eventos conectados pela busca interminável de um repouso, um porto seguro onde pudesse afogar seu ímpeto bárbaro de autodestruição. Viam, as duas, as vicissitudes humanas com enrustido sarcasmo; pois nem mesmo admitiam ter sentimentos mundanos. Quanto mais afastadas das virtudes e defeitos, melhor. Desejavam sumir na escuridão do vazio de suas almas junto às tortuosas lembranças da infância, tão controversa com a admiração do pai e desejo de ser mais que sua filha, o que, talvez, pusesse em risco toda a segurança dessa condição subalterna. No mais, não suportava a presença de pessoas muito sofisticadas, elas eram cansativas, pois as duas adoravam ter o controle intelectual dos relacionamentos quaisquer que fossem. Duelar mentalmente, só contra o programa de xadrez de seu computador e contra os filósofos da biblioteca exibidos como troféus de uma aventura na savana do conhecimento.

Todo esse mundo estava por um triz. Narcisa deixara Taís se apaixonar por seu amante de refinamento barato, que gostava de lenços umedecidos e sabonete líquido. O motel era suburbano, mas pelo menos tinha uma decoração encantadora. Nada de iluminação de bordel barato, as flores murchas nos corredores forneciam um ambiente familiar, fazendo com que risse por dentro, numa felicidade infantil; sentia-se em casa, com 10 anos e aquele quarto era o seu quarto, onde iria passar as próximas 3 horas brincando com seu amigo de infância. O elo entre o passado e o presente estava se tornando cada vez mais estreito, reconhecia nele o jeito a liberdade pueril, as tardes vazias de eterno limbo como parecia ter sido sua juventude. Estava feliz, perigosamente feliz, pois um adulto não pode viver com as (dês)preocupações de uma criança por muito tempo. A infância torna-se uma terra proibida, a maturidade é o pecado que nos expulsa desse paraíso. E a culpa de nossos pais também. Narcisa sabia disso, mas deixava Taís ir cada vez mais longe, como uma mãe que observa o filho desbravar sozinho o limite da vizinhança com uma preocupação crescente e um sadismo maternal de ter a responsabilidade tirada de si. Responsabilidade da necessária dor da desilusão, impressa na alma da criança no aprendizado dos limites do mundo do homem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

comunique-se