sexta-feira, 21 de março de 2014

Lúcio

Lúcio era um fantasma. Habitava sua antiga casa que agora já abrigara três gerações de estranhos.

A realidade da morte não chegou como uma surpresa, mas como um encontro há muito esperado, imaginado, sentido. Costumava brincar de morto no chão do quintal dos fundos, ficava deitado por mais de uma hora, imóvel, até perceber a movimentação do sangue em suas veias e o barulho dos pensamentos que, atingido esse estado de espírito, lhe pareciam estranhos. Depois de alguns minutos de observação interna, sentia todo seu corpo formigar e imaginava estar sendo absorvido pelos objetos, passando se tornar mais um, inanimado, estático... mas sempre caia na escuridão do sono a qual, em sua opinião, era a forma do corpo, ainda vivo, impedir sua transmortação. A transmortação é um fenômeno, segundo a Teoria de Lúcio, na qual a alma perde a noção de alma e adquire a noção de corpo, habitando o resto material, mas assumindo integralmente a função a que lhe é dada no mundo, sem deixar de transmitir à sua nova função todo o conhecimento teórico e prático à alma que venha  a manuseiar o objeto.

Queria ser uma caneta depois de morto. Para inspirar um grande autor. De acordo com sua teoria, ao se tornarem mais um objeto depois de mortos, os objetos, por dedução lógica, também poderiam ser homens. Ou um avestruz.

Por isso não se desfazia de quase nada. Atribuía sua agilidade às sandálias animadas pelo espírito de um grande atleta grego, sua imaginação à um poeta prático transmortado no seu boné favorito (muito embora não saberia dizer o que poetas, nem poetas práticos, fazem). E quando se sentia mal com algum objeto qualquer, queimava-o. Só assim poderia se desfazer de vez dos maus espíritos, impedindo-os de assumirem outra forma. Essa prática, contudo, levantou sérias preocupações da família e amigos, num julgamento equivocado quanto a uma possível tendência incendiária do pequeno Lúcio. Fósforos, isqueiros, acendedores, objetos e líquidos inflamáveis em geral, eram de difícil acesso em sua casa.

Mas o que importa é o presente. E agora estava morto, e não havia, para sua decepção, se transformado nem em caneta nem cadeira nem qualquer outra coisa que não lembrasse o próprio corpo quando ainda respirava. Contudo, também ainda não havia conhecido nenhum outro fantasma, nem aqueles que morreram em sua antiga casa, os imediatos sucessores da casa 14 da Rua das Amélias. Também observava com inquebrantável atenção a morte de insetos e não percebia nenhum fenômeno diferente daqueles que presenciara em vida. Isso levantava outra hipótese: seria ele o único que não se transmortou?  Fazia sentido. Mas por quê?

Eu não saberia dizer. Lúcio ainda habita a casa 14 da Rua das Amélias para os curiosos.

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