segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Merece um final feliz

Joanna tecia uma rede na varanda de casa para sua madrinha enquanto os pássaros cantarolavam uma prosa ecumenica aos céus do sertão gaúcho. O riacho cochichava borbulhos trazidos pelas montanhas altas e geladas enquanto a natureza morta posava torta na parede da cozinha. Seu marido sozializava um charuto com os bodes do pasto que contemplavam a beleza da manhã escassa. Maria, a menina mais nova, trazia no seu vestido travessuras escritas em rasgos no algodão e manchas amareladas, beijos da terra batida onde costumava brincar com seu falecido avó. A vida parecia amena aos olhos do povo que ali passava para comprar um queijo ou leite fresco, mas verdade seja dita: o trabalho era pesado na lavoura e a diversão daquela família consistia nas missas aos sábados e venda de fumo para compra de doces na cidade, aos domingos. O resto da semana só era colorido nos olhos das crianças, de azuis a jabuticaba e doces no carinho com os animais. Marreco era o pato feio, adotado mascote e salvo da panela por um filhote de trasgo! Os trasgos habitavam o vale tenebroso, onde só os meninos mais valentes e destemidos se aventuravam! Pedro e Lucas, irmãos mais velhos, de 12 e 8 primaveras, proibiam a pequena Maria de acompanha-los em suas incursões ao mundo mágico de suas fantasias. Ela, amedontrada mas não menos curiosa, espreitava em silêncio eterno para dentro do vale e lá nada encontrava de especial. Sentia-se menos capaz; será que existia uma senha secreta para visitar aquele mundo de duendes, fadas, monstros e dragões? Para onde iam os meninos? Suas dúvidas ficavam para si, não podia perguntar a ninguém ou estaria denunciando sua falta de obediencia, o que poderia lhe prejudicar ainda mais junto ao Tribunal dos Magos. Contentava-se com as pequenas vitórias, descobria uma nova planta, um novo inseto e ia cada vez mais longe... e mais longe. Encontrou um riacho e um homem, perguntou se era Kalak, o velho de sete patas. O homem sujo tirou sua roupa e entrou na água, transformou-se em fera-bicho e Maria ficou paralizada de medo: era a Cutiara! A cobra maligna e traiçoeira. Maria encheu o peito de coragem e amarrou um cipó na cintura, era a mandinga certeira contra seres rastejantes e pegajosos nas palavras! A menina subiu na árvore e de lá cantarolou a plenos pulmões o chamado dos pássaros do Norte, o chamado de perigo dos seus irmãos. Os dois estavam ali perto e desceram voando do pé de jabuticaba para salvar sua irmã. Lá chegando não encontraram nem cobra, nem homem. Apenas uma menina clara cansada de nada e sortida de tudo. Comeram raízes e declamaram poemas à luz do dia. Pedro, o valente, empunhou seu graveto mágico e saltitou pelas pedras do riacho. Lucas, o arqueiro certeiro, acompanhou seu passo e logo caiu na água gelada. A menina riu e viu nos irmãos dois companheiros de viagem. Sentiu-se formosa pela alegria de estar viva e ter descoberto no encontro dos afluentes de sonhos da família o seu oceano.

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