segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Pelas vias do coração

Jerônimo era um menino de barro e seus amigos faziam gracinhas de sua aparência. Quando queriam infernizar o pequenino vizinho, jogavam água em sua cara que se desfazia em dobras de argila, tornando sua expressão irreconhecível. Não sabiam se chorava, ria, ou se enfurecia. Depois de um tempo apontando e rindo da deformidade provocada por eles, os garotos, no primeiro sinal de remorso, voltavam às suas outras brincadeiras, como se nada tivesse acontecido.

Cabia a Jerônimo voltar para casa, lavar o rosto e recompor sua aparência. O assédio constante acabou aperfeiçoando sua arte em desenhar seus sorrisos, olhares, rugas. As emoções desenroladas por debaixo das dunas de areia, só a ele cabia sentir e reconhecer como patrimônio único e inviolável. Sua introspecção foi-lhe forçada pela violência de seus colegas. A inexpressividade do amontoado cinzento, ao ser reconstruído, dava lugar a um rosto atônito, disforme e emoceifado (desconectado das emoções, do seu mundo íntimo que lhe era agora secreto).

Com o passar dos anos, não mais precisava das mãos para esculpir a face; poucas lágrimas e contração de músculos específicos de argila arquitetavam facilmente suas máscaras: um rosto tranquilo de paz, sedutor, enfurecido, apreensivo ou solícito. Certo é que tanta manipulação acabou por esvaziar de emoção a composição que apresentava ao mundo; esquecera de seus tesouros de infância, do mundo íntimo que se desenrolava em constante asfixia, da cegueira alheia dos seus parentes, amigos e algozes em não enxergarem seu coração mutilado que sangrava gotas de barro e que também sorria e dançava. No entanto, ao menor sinal de agressão, fechava para sempre suas verdadeiras emoções, seu verdadeiro Eu. Assim foi, de amigo a amigo, de íntimo, familiar a estranho, escondendo-se do mundo. Entocava-se no próprio corpo que não era mais do que reflexo do que achava ser agradável aos olhos do mundo para passar despercebido pela vida.

No entanto, chegou um dia que, ao olhar para o espelho, não mais se reconhecia; via um autômato, uma obra de arte que eclipsava o artista: a alma. E tomou desgosto pelo que refletia. Repudiavam-lhe os elogios pela beleza e simetria das formas do corpo tão frágil, mas não permitia a mais ninguém vê-lo desmanchado nos momentos de erupção dos sentimentos que se avolumavam dentro de si. De tempos em tempos eles brotavam como jorros violentos gritando: AQUI ESTOU, NÃO OUSE SE ESQUECER DE MIM – EIS-ME A SÍNTESE DE TODAS AS PAIXÕES! O DESEJO DE QUERER VIVER, AMAR E SER AMADO! EIS-ME HUMANO! E desfaziam aquele ídolo de barro que escorria pela cidade. Para se recompor, tinha de se arrastar até seu castelo e com muita delicadeza recuperar seu corpo, parte por parte. E para isso, tinha de lembrar de si. Nesse momento de solidão, de viagem ao mundo íntimo da memória, fruto do amor próprio, perdido, surgia o aconchego fraterno da alma para com sua forma, a reconciliação do Criador – da alma -, com a Criatura - o vaso de olhos, narizes e boca. Mas não era suficiente. Era necessário viver.

Ao fim dessa conversa, sua forma não era perfeita, mas lhe agradava. Saía às ruas se sentindo Belo e Livre! Não mais lhe importavam os afetos, só a si, dava valor às curvas únicas proporcionadas pela flexibilidade de sua natureza. Percebeu que exalava uma fragrância entre os poros abertos que deixara por descuido. O mundo à sua volta vibrava com aquele hálito estranho. Tirou um dos olhos e pôs-se a examinar o orifício em sua pele. Encontrou, abaixo das dunas de areia, rios correndo em galerias intermináveis de pureza, filtrados pela casca grossa de sua aparência. O que o mundo via em sua inconstante beleza - sem saber - era um imenso filtro, um purificador. Tomou conta de que poucos haviam bebido da essência, do fruto de tantos encontros, de tantas feridas, de tantos sentimentos exprimidos, de tantos sucos saborosos extraídos de tanta dor. A mão que espreme esse suco é a dor! E seu gosto se chama Amor!

Mergulhou na alma, encontrou um Deus sem forma, só essência. Eu fiz isso? Perguntou. Eu tenho esse gosto? Esse sabor? Lágrimas brotavam do vaso que não era só vaso, mas instrumento de depuração e cura.

Jerônimo regou o mundo com suas palavras, suas lágrimas eram bênçãos no solo seco dos corações humanos que iam, gota a gota, extraindo de suas próprias dores a fonte para saciar sua sede na condição de argila. Saiu do mundo íntimo, maravilhado. E trouxe pra superfície a convicção de que nada se perdia, nenhuma dor, nenhum momento, a vida era absoluta em sua alquimia. Fez um esforço para desfazer o seu rosto e abriu mais poros, cada vez mais largos. Até que rebentou todo o jarro e dilatou-se pelo mundo, pelos oceanos, pelos pulmões. Descobriu o maravilhoso transformador que é o corpo humano! E num gozo divino voltou à vida sob a forma suave de nuvem. Choveu e, do barro, renasceu.

Um comentário:

comunique-se