sábado, 21 de agosto de 2010

Mais cartas

Praga, 11 de Janeiro de 1876

Das mulheres que deixaram marcas de batom nas páginas de minhas memórias, Kátia era a de lábios mais grossos e avermelhados. Ela era insaciável e isso me cansava. Não só fisicamente, mas espiritualmente. O desejo sexual dela não era algo normal, não era uma superexcitação da genitália ou hormônios tropicais - de uma só estação, sempre quente e úmido -, era algo um tanto triste, uma decadência de outros projetos da identidade daquela mulher. O que lhe restava era essa essa competição consigo mesma. Foi de tal forma nosso encontro romântico de algumas décadas que percebi a banalidade do ato em si. Perdi o desejo ao ver aquela mulher humilhar-se por migalhas de atenção e aprovação pelo seu esforço patético de sentir prazer. Deus, seria essa a última fonte de satisfação praquele ser humano? Uma epopéia vulgar por espasmos de contemplação na porta dos céus, cujas asas de cera que antes lhe alçavam ao Belo lhe traíam, perdendo a coesão da forma no contato com o divino, reverberando numa queda moral sem fim? Como uma vida podia ser resumir a isso? Assim foi minha paixão com Ângela.

Att,
Hirsch, G.

Berna, 14 de Junho de 1880

Nina, preciso que você venha me ver. Gustavo me abandonou. Tem algo de errado comigo. Você sempre foi a mais esperta, preciso de seus conselhos. Eu te amo, pequena, és tudo que me restou.

Da sua irmã,
Kátia.


Éden, 19 de Abril de 1925

Espero que você saia dessa o mais rápido possível e venha passar o verão conosco nos Alpes. Aqui o clima é ameno e as crianças se divertem junto ao jardim do éden. Vovô cultivou o jardim desde seu casamento com tia Anastácia. Ela nunca quis ser chamada de vó, então a chamamos de tia, apesar de ser mais velha que vovô. Estou grávida de gêmeos e seus corações me fazem sentir duplamente viva. Duas pequenas almas crescem no meu corpo. Agradeço com lágrimas pelo Amor de ser mãe. Meu marido não entende, acha que sofro de psicose. Foi buscar um doutor na Alemanha. Disse ser pioneiro num tratamento alternativo que não envolve eletrochoque. Faria mal a nossas crianças. Como o céu aqui é lindo, Amélia! Juro poder ver os anjos por trás das nuvens. É tão perto de Deus! Essa família já foi mais unida, mas prefiro não remoer o passado. Estou tão feliz! Kátia saiu do quarto hoje e até me chamou do nome que queria que eu tivesse: Nina. Ainda não olha nos olhos do meu marido. Eles foram amantes na juventude. Ela era tão apaixonada por Gustavo que queria ter filhos com ele. Naquela época ainda não sabia da sua condição. Faziam amor todos os dias. Kátia me contava que podia ver seu filho acenando dos Céus quando entravam em transe. Cada vez que se deitava com Gustavo parecia chegar mais perto. Certa vez disse ter a impressão de ter tocado os dedos do esperado filho. Mas Gustavo a largou, sem mais nem menos. Por dez anos ele desapareceu. Depois que descobriu não poder ter mais filhos, minha irmã desistiu da vida, da alegria. Quero que ela me ajude com os meus, não posso deixa-la longe do meu coração. Eu a amo mais que tudo no mundo. Fugirei com ela para a Holanda. Por favor, cuide de Gustavo, não o desejo mal, mas não posso abandonar minha irmã.

Beijos carinhosos,
Ângela.

Essa carta foi encontrada junto ao um corpo infeliz de um homem que não soube amar pra construir, mas para possuir.

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