domingo, 28 de setembro de 2008

Um anão sem anel

Alice tomou seu chá, estava quase gelado, uma porcaria. Anotava as passagens mais importantes do livro para ela mesma, deixando de lado a preocupação em fazer um resumo coerente para a prova. A luz no quarto favorecia ao pensamento lúdico: era fim da manhã e o Sol, egoísta, parecia querer o céu só pra ele, iluminando a partir do centro toda as vidas abaixo, sem pedir permissão. Assim eram os pensamentos de Alice, intrometidos, indiferentes às demandas, feitos para si mesmos. A janela do quarto estava pouco coberta pela fina cortina vermelha, deixando a caneta livre para saborear as cores calmas do caderno, dos sonhos.
Era um livro de metáforas, pela menos para ela. Parecia falar sobre a biografia de um filósofo que morrera antes de terminar sua obra. Pura balela, uma desculpa para o autor diferir sobre todo tipo de julgamento humano maquiado na narrativa sobre outra pessoa que pretendia partir dela mesma. Mas Alice sabia reconhecer todo tipo de desculpa cheia de culpa pois era mestre nessa arte. Há dois anos largou um namorado por não saber mentir o amor. Era tão sincero que enjoou, não conseguia fazer poesia a partir dele, foi um período morto para as grandes pretensões artísticas de Alice. Só conseguia escrever o que era falso, pois só se pode criar metáforas daquilo que não se entende, que se sente. O amor ela entendia bem, era tão óbvio. Pelo menos acreditava ser. Talvez fosse arrogância ou medo ou preguiça, vai saber.
Terminou com o livro também. Foi deitar. Na cama, se masturbou. Fazia tempo que não se masturbava, não era nada comum. Também fugia de qualquer coisa que fosse comum. Roupas, música, filmes, pessoas, idéias, sentimentos. Queria olhar no espelho e ver outra pessoa, mas não conseguia. Era a mesma, só que mais velha.
E se odiava, mas colocava o ódio nos outros. A culpa, bem sabemos. Ela era mestre nisso. Morreu sem dizer adeus, uma nota inacabada sobre um beijo. Não era o primeiro nem último, apenas aconteceu. Como sua vida.

3 comentários:

  1. Eu não sei o que comentar, afinal, eu deveria ler primeiro. Quando eu terminar de ler algum conto, comento de forma decente, prometo. =D

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  2. ^Bem legal..... sujo e poético.... bem legal brincar com a parte mais lírica pura e algo mais sujo mundado. Gostei bastante!

    Não brinco quando digo que um dia lançaremos uma coletânea de contos juntos!

    Abs

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