terça-feira, 22 de abril de 2008

Antropomorfismo Divino parte 1

Rafaela terá de esperar... assuntos pendentes. Enquanto isso, um re-post de uma bela estória de amor.


(...)

Há tempos imemoráveis (pois era antes mesmo do tempo começar a ser tempo) viviam felizes Deus e suas primeiras criaturas, seus reflexos. Cada ser era a imagem perfeita de infinitos perfis divinos e carregavam o peso da existência filiada a um ser tão controverso como seu Criador.
Deus, antes da brilhante idéia de preencher o vazio infinito onde habitava com espelhos para admirar sua própria magnificência, vagava pelos becos da inexistência e carregava um buraco negro em seu peito; respirava o nada e exalava coisa alguma. Percebeu, então, que era único a si mesmo e a tudo; ficou curioso por conhecer essa figura singular.
Criou o universo, insólito e gelado, onde depositou sua onipresença para então decorá-lo com extremo bom gosto. Considerava-se de bom gosto e a prova disso era que não havia ninguém para lhe dizer o contrário. Só havia um item em todo o mundo: o espelho. Logo, ficara Deus maravilhado pelo seu próprio reflexo, seu infinito poder e perfeição iluminando todos os cantos de seu mundo.
Após uma eternidade narcisista, foi abatido por uma fulminante depressão. O universo definitivamente congelou, suas engrenagens invisíveis - sustentáculos dos limites das leis divinas - corroeram. Deus indignou-se com a injustiça de não existir uma sequer criatura capaz de admirar tão nobre perfeição. Dotou seu espelho celestial de consciência e assim começou o primeiro diálogo entre Deus e sua criação:

- Como estou hoje?
- Onipotente como vossa pessoa sempre foi, é e será; ó Criador.
- Espelho, espelho meu; estou entediado. Sou completo a mim mesmo, sei que não deveria sê-lo... mas algo me impele na busca por algo mais, sinto-me escravo de minhas próprias forças infinitas e elas me limitam.

(...) um silêncio perturbador evidenciava o abismo entre os dois seres, até que algo inesperado aconteceu:

- Porque não crias outros iguais a mim tantas quantas forem as faces de sua potência? Talvez seja mais fácil limitá-la para poder encontrar aquilo que tanto lhe fere a paz eterna.
- Criatura! Quanta ousadia?! Proferes estas palavras de espontânea vontade ou fui eu que as sugeri subliminarmente a vós?
- Creio ser incapaz de conceber algo de minha própria autoria, Senhor.
- Muito bem. Excelente idéia esta que acabei de ter. Tu terás, então, o dom de decompor-me em imagens divinas, mas jamais perfeitas. Porém, todas terão a sede pela volta ao Pai, pois toda dominação deverá fundamentar-se numa ilusão. Ilusões, estes serão meus primeiros filhos.

E assim fez-se a vontade de Deus. Incontáveis criaturas começaram a emergir das sombras, luzes e penumbra; cada uma carregando na face um ar pesado e opulento. Cada gesto de Deus era imitado pela sua Legião de sombras; pouco a pouco ganhavam consciência de sua individualidade, num processo lento e doloroso. Aprendiam suas limitações e estas as irritavam, fazendo-las se rebelarem contra as leis divinas. Muitas imagens apenas copiavam outras imagens, rebaixando-se ainda mais. E temiam a Deus como se fosse um desconhecido, uma ameaça; esquecendo-se serem, elas mesmas, reflexos de seu Criador. Outras tinham sede pelo conhecimento de seu poder e estas foram tomadas como favoritas pelo seu Pai. Aos poucos, foram se separando dos demais; num processo seletivo, Deus formou seu círculo íntimo de amizade. Estranhamente, suas imagens preferidas vinham de partes desconhecidas ou reprimidas de sua personalidade.



(...)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

comunique-se