quinta-feira, 13 de março de 2008

A Cronista

Rafaela era seu nome e esguio era seu corpo. Frente ao espelho, admirava a generosidade da Natureza e a misericórdia do tempo na gentileza das curvas e timidez dos relevos que desabrochavam da alma, imprimindo na pele o certificado de uma maturidade há muito perseguida. Ao contrário da maioria das mulheres de sua idade, cultivava um carinho suave pelo desgaste da própria matéria; saboreando, como poeta que era, o vinho da sabedoria, fermentado no inviolável barril da vida.

Todo o domingo, Rafaela seguia o mesmo ritual independente dos acontecimentos da semana. Acordava, fazia amor com seu marido, preparava o café com a filha e se trancava no quarto com seus caprichosos amantes, os livros. Durante as quatro horas seguintes era terminantemente proibido para qualquer membro da família – animal, vegetal ou marido – violar o íntimo mundo em transe da renomada cronista paulista. Era o momento máximo de expressão de sua vertiginosa paixão pelo isolamento; a catarse de inclinações eremitas sensíveis desde tenra infância. E assim escrevia suas cartas aos jovens amantes , conjunto de memórias publicadas semanalmente sob o pseudônimo de Ana. Esta era uma ninfeta misteriosa e devassa, vítima de uma vida intensa e fogosa; suas aventuras sexuais jamais extrapolavam o nível do vulgar, dançando perigosamente sobre a fronteira imaginária do apiedamento e condenação dos sórdidos leitores.

Ana recebia muitas cartas apaixonadas de toda sorte de gente: meninos desesperados por compartilharem seus hormônios, mulheres frustradas com seus casamentos, garotas curiosas, homens de posses e moralistas. E deliciava-se ao responder a esses últimos, testando seus limites, pondo em cheque sua autoridade. Ana podia ser ingênua para com as promessas humanas, mas era possessa de um malicioso instinto interrogador na esfera moral; o que mais excitava Rafaela, sua mãe e cúmplice.

(continua)

Um comentário:

  1. queria ser rafaela pelo menos no periodo em que ela se tranca no quarto com os livros.

    [e esse teu "continua" me deixa sempre mt curiosa...]

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