domingo, 6 de janeiro de 2008

A janela

Era uma velha de coração de pedra, assim como a janela sob a qual se apoiava todos os dias. A vivacidade da rua era seu circo, seu deleite divino. Dentro de casa, móveis velhos e empoeirados se abraçavam estendendo sorrateiramente suas teias pelo chão. Muitos a visitavam e era conhecida pela generosa hospitalidade.

Portadora de um sorriso modesto e acolhedor, transpirava segurança desde que não a encarassem muito tempo, num desconfiante olhar que privigeliasse o relevo sinuoso de sua face talhado pela laboriosa mão do tempo.

Tinha vergonha de si, de não ter um companheiro ou alguém para amar. Esforçava-se, então, para manter uma versão imaculada de sua pessoa no imaginário popular. Não gostava que a encarassem pois temia que a insistência de um curioso acabasse por penetrar no seu vazio, revelando-a nua aos olhos de um coração cheio de vida. Esse pensamento a excitava e, pelo fato da excitação ser um estado de espírito profano, reprimia o corpo como quem exorciza um demônio.

Certo dia um viajante lhe bateu a porta pedindo abrigo. Sem pensar duas vezes, preparou-lhe logo um banho quente, comida e lençóis limpos. O viajante ofereceu um presente em troca, a velha senhora não aceitou de imediato, não podia se dar ao luxo de ser taxada como vaidosa. Cedeu na terceira tentativa.

À noite, em seu humilde quarto, abriu a pequena caixa de madeira que recebera do homem - que disse se chamar Pedro. Era um pequeno colar de brilhantes. No dia seguinte, após preparar o café da manhã, foi até o quarto do hóspede para adverti-lo das rígidas normas e pontuais atividades do dia. O café era servido às 7 e meia. A porta estava entreaberta, ao adentrar seu coração entoou um cântico cacofônico num dueto com sua cabeça. O homem estava deitado no chão, aparentemente morto e com um indiscreto buraco no peito (do tamanho de um melão) onde deveria se encontrar o coração - segundo sua falecida professora particular lhe ensinara em livros perdidos numa infância remota. Fora esse pequeno detalhe e a senhora em pânico, tudo estava em ordem no quarto. A cama não mostrava sinal de uso e não havia manchas de sangue.

Continua.

2 comentários:

  1. Vamos ver o que acontecerá :)
    Abração

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  2. credo... que cena horrível!

    adorei o "seu coração entoou um cântico cacofônico num dueto com sua cabeça".

    abraços,

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